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Desde 2003, a legislação brasileira exige o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas, do infantil ao médio. No entanto, mais de duas décadas depois, barreiras como questões religiosas e a falta de diálogo ainda persistem. Em São Paulo, redes de ensino têm se adaptado, utilizando recursos como quadrinhos e rodas de conversa para integrar esses temas de forma rica e acessível aos estudantes.
O mês da Consciência Negra, em novembro, trouxe à tona a importância dessas discussões. Recentemente, um incidente em uma escola pública paulista, onde um pai chamou a polícia após sua filha desenhar um orixá em uma atividade escolar, gerou críticas e evidenciou a necessidade de maior compreensão e diálogo sobre a diversidade cultural e religiosa.
Para combater o racismo e promover a valorização da história afro-brasileira, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo tem investido em um vasto acervo. Em 2022, foram adquiridos 700 mil exemplares de obras com temática étnico-racial, abrangendo públicos infantil, juvenil e adulto. Além disso, a secretaria oferece processos formativos para os educadores e disponibiliza documentos de referência, como as “Orientações Pedagógicas: Povos Afro-brasileiros”, que auxiliam na implementação de práticas antirracistas.
O Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER) é responsável por apoiar as unidades educacionais na integração desse acervo ao Currículo da Cidade, garantindo que as práticas antirracistas sejam uma realidade.
No âmbito estadual, o Programa Multiplica Educação Antirracista, conduzido pela Coordenadoria de Educação Inclusiva (COEIN) e pela EFAPE (Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação), tem capacitado o corpo docente. Desde 2024, 6,8 mil professores já passaram por formações sobre cultura e religiosidade africanas. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) reforça que “essa implementação assegura que os conteúdos sejam incorporados à rotina escolar como parte essencial da formação histórica e cultural dos estudantes”.
A professora Núbia Esteves, que leciona geografia na EMEF Solano Trindade, na periferia de São Paulo, é um exemplo de como a criatividade pode transformar o ensino. Premiada por seu trabalho na preservação da memória escolar e do bairro, ela integra a cultura afrodescendente em suas aulas e em projetos interdisciplinares.
“Eu não trabalho religião. Eu trabalho os orixás fora da questão religiosa, considerando a questão cultural. Abordo os arquétipos culturais, a mitologia, com uma mitologia comparada”, explica a professora. Ela compara a proximidade entre orixás como Iansã e a deusa grega Atena, Oxum e Afrodite, e Xangô e Zeus, promovendo um debate sobre as semelhanças em mitologias de povos distintos.
A docente também destaca a importância da preservação ambiental, mostrando como orixás como Iemanjá (mar), Oxóssi (matas) e outros elementos da natureza são reverenciados. Essa abordagem contextualiza a cultura afro-brasileira dentro de um panorama mais amplo de valores e saberes.
Para tornar o aprendizado ainda mais dinâmico, a professora Núbia Esteves utiliza quadrinhos e registros audiovisuais. “Dá para trabalhar com literatura, ler trechos de Pierre Verger ou Reginaldo Prandi, por exemplo, e aí criar quadrinhos e cordéis”, sugere. Ela relata que um aluno chegou a criar um quadrinho onde um orixá conversava com um deus grego, demonstrando o engajamento dos estudantes.
As rodas de conversa são outro recurso valioso, promovendo a reflexão dos alunos sobre ética, convivência e valores individuais. Apesar da clareza em sua abordagem, a professora Núbia Esteves já enfrentou questionamentos sobre estar tratando de religião em sala de aula.
“Falo para eles que não é essa questão, que o trabalho com os orixás é uma forma cultural e não religiosa. Apresento eles como parte da história, da arte, da literatura, da formação do Brasil, e que é uma herança que veio do continente africano, junto com as pessoas”, argumenta. Ela compara o estudo dos símbolos africanos com o estudo da mitologia grega ou das lendas indígenas, ressaltando que a resistência a esse conhecimento muitas vezes é fruto de um racismo estrutural que buscou demonizar tudo que é africano.
A professora enfatiza que a cultura, mesmo quando de origem religiosa, pode ser trabalhada de forma a promover uma educação antirracista. “Eu posso trabalhar São João nas festas juninas, dentro de uma cultura popular, Santo Antônio também, nas obras barroco, isso não significa que eu estou falando de religião”, exemplifica. Ao conhecer a cultura de outros povos, desmistificamos preconceitos e nos tornamos menos racistas.
O uso de ferramentas como quadrinhos e a discussão de arquétipos culturais, sem a obrigatoriedade de abordar a religiosidade, permite que as escolas cumpram a legislação e promovam uma educação mais inclusiva e representativa. A estratégia de Núbia Esteves, de focar na cultura e na mitologia comparada, tem se mostrado eficaz em desmistificar e valorizar a rica herança afro-brasileira, combatendo o racismo desde as bases da formação educacional.